newsletter #21
GLÓRIA A TODAS AS LUTAS INGLÓRIAS!
“Deve ser uma dessas três câmeras. Qual tento primeiro? Porra, já deram play na música. Ainda tá muito escuro, quase não vejo a lente. Vou tentar aquela. Merda, não era aquela. Na próxima estrofe tento a outra. Não esquece a letra. Primeiro ‘mãos’, depois ‘pés’. Articula bem as palavras. Não fica muito tempo sem piscar os olhos, que parece um psicopata. Endireita as costas. Mas esse microfone tá baixo demais. Será que consigo ajustar? Não dá tempo, já tá na hora do plano fechado. Vou tentar a outra câmera. A do meio, vai. Merda, também não era essa. Tudo bem, ainda temos uma chance. Relaxa o ombro. Respira. Lembra a letra. Articula. Daqui a pouco chega a parte mais difícil. Não fecha demais o U do ‘YouTube’. Faz o U sorrindo, essa parte é engraçada. Mas como é que eu vou cantar um U sorrindo? Tá na hora de novo. Vai na terceira câmera agora. Só pode ser essa. Tem que ser essa. Acendeu a luz vermelha. É essa! Esquece a luz, olha pra lente. Concentra na expressão. Fecha os olhos só na última sílaba. Respira. Articula. Olhos. Costas. Braços. Letra. Agora pra reta final. Tira o microfone do suporte. O microfone não sai. Mais força. Maldito suporte. Mais um pouco de força. Saiu! Perdi uns segundos mas dá tempo. Vira pra plateia. Abaixa a mão esquerda. Palma pra cima. Inspira. Prepara o diafragma. Abre a laringe. Contrai o abdômen. Joga o tronco pra trás. O pescoço não! O tronco! Nota aguda demais pra chegar com o pescoço esticado! Falhou a nota. É claro que ia falhar. Desce o pescoço agora. Devagar. Mas não tão devagar! Últimos segundos. Abre o braço. Fecha o braço. Acabou. Foi péssimo, caguei tudo. Essa não valeu. Dá pra repetir? Quantas vezes? COMO ASSIM ESSA ERA A ÚLTIMA???”
Bem vindo ao Festival da Canção! Uma montanha russa que vai do desespero do primeiro dia de ensaios, ao êxtase da apresentação final. A parte do desespero, conforme narrada aqui acima pelas vozes da minha cabeça, são muito mais responsabilidade minha do que do Festival, preciso dizer. Tudo que pedi foi cumprido à risca por eles. E como bom control freak que sou, fui bem específico nos pedidos. Luzes, grafismos, planos, cortes, tempos, cores, eu meti o bedelho em absolutamente tudo nos preparativos para a atuação.
Arame farpado e uma jaula de luzes que desenham a bandeira da União Europeia no chão
Mas é como diz a velha máxima: na prática a teoria é outra. Quando o diretor disse “ação!” e as ideias enfim saltaram do papel para a realidade, fiquei um pouco desnorteado. O problema é que a coisa que a gente mais precisa nesses momentos para se reorientar é justamente aquela que menos se tem: tempo. Felizmente, a nossa apresentação não era muito complexa. Isso era uma das minhas maiores preocupações, seja na gravação da música, seja na encenação para a TV. Nada de efeitos mirabolantes, pirotecnias, distrações. Apenas o espaço justo que precisávamos para passar a nossa mensagem com sinceridade e foco. Nisso não concedemos nem um centímetro. Não alteramos uma vírgula. Não nessa canção. E no último dia, apesar de toda a correria, foi um êxtase. Conseguimos fazer exatamente o que queríamos, do jeitinho que queríamos. E como resultado natural… fomos sumariamente eliminados!
Na newsletter passada falei bastante sobre a dureza do assunto que eu quis tratar nessa música. Também falei um tanto sobre isso nas redes, comentei as reações agressivas que ela provocou. Ser um brasileiro, cantando em português brasileiro, cobrando respeito aos imigrantes e apontando o dedo à hipocrisia do discurso anti-imigração. Por cima disso, optar por uma composição pouco “festivaleira” (seja lá o que isto for) e por uma apresentação bastante despida daquela linguagem de entretenimento televisivo. Mesmo fora do nosso habitat, não queríamos fingir ser o que não somos, simplesmente.
Daí, para um boa parte da crítica aficionada pela Eurovisão, nossa participação foi “sonífera”, “monótona”, “aborrecida”, “estática” e “zero competitiva”. O melhor resumo que li foi: “são três minutos que parecem uma hora!”. Mas a forma não explica tudo. Eu também gosto de dar crédito à inteligência das pessoas. Ainda mais de pessoas que ativamente pegam num telefone e pagam para votar numa canção. Tenho a triste certeza que muito do “grande público”, essa entidade mística e impiedosa, sentada em seu sofá num sábado à noite, ouviu atentamente cada palavra que cantei. Entendeu a mensagem. E respondeu: “Não quero ouvir isto. Não quero pensar nisto. Isto nem sequer existe.”
E sabem do que mais? É precisamente por isso que tínhamos que ir lá cantar esta música. E é por isso que vamos continuar a cantá-la! Mais importante que cantar a vitória, é cantar a luta. Como dizia o bardo da Muda, meu mestre Aldir Blanc: “Glória a todas as lutas inglórias!”. E que luta inglória nós estamos lutando nestes dias, neste mundo.Portanto, em comemoração à nossa formidável derrota, na próxima sexta-feira vamos lançar uma nova versão de “Quem Foi?”. Porque uma só tá pouco. É uma nova versão no melhor estilo Visita, produzida no mesmo piano e o no mesmo estúdio onde eu e Pri gravamos o nosso último álbum. A arte da capa é da Sofia dos Reis, e foi feita originalmente para divulgar a manifestação “Não nos encostem à parede!” no ano passado, contra a violência policial sobre imigrantes. Ela resume em uma imagem tudo o que eu quis dizer com a música.
Assim que ouvirem, digam aqui: gostam mais da versão com sanfona ou com piano? Mas digam mesmo. Aproveitem que agora esta newsletter tem um SAC! Inventei essa moda no mês passado e achei tão bom que já a incorporei como parte inalienável da newsletter. É só apertar no botão aqui embaixo, e abrir o coração.
Relembro que as mensagens são anônimas. Ou seja, se não assinarem no final, não tenho como saber quem disse o quê — embora muitas vezes consiga adivinhar. Agora aproveitando para responder algumas mensagens deixadas por lá nas últimas semanas:
- Não, não penso em fazer uma versão em papel desta newsletter.
- Obrigado a tod@s que partilharam relatos de xenofobia que já sofreram ou testemunharam. Vocês encheram ainda mais de sentido a nossa presença no Festival da Canção. Era em vocês que eu pensava enquanto cantava.
- Vera, pode ir agora mesmo ao meu site que vai encontrar a sua sugestão realizada! A partir de hoje todas as edições desta newsletter podem ser (re)lidas numa página de arquivo arrumadinha. Desfrutem!
- O Samba de Guerrilha terá sim mais uma apresentação este ano! Será no segundo semestre. Ainda não posso divulgar publicamente a data, mas será dentro de um grande evento literário… 👀
ANTES QUE EU ME ESQUEÇA
Falando em evento literário, informo a vocês por aqui em primeira mão: está chegando um livro novo meu! Fiquem atentos às minhas redes que a pré-venda começa semana que vem. Mas isso é assunto para a gente mergulhar na próxima newsletter. Nos vemos em abril! (de preferência, em uma das datas abaixo)