newsletter #19
AFINAL, ADOTEI UM GATO 🐱
Com exceção de uma cágada chamada Bisteca, nunca tive animais de estimação. E mesmo Bisteca só viveu em nosso apartamento por poucos meses, quando eu tinha uns 6 anos de idade. Depois mudou-se para a casa do meu tio, onde vive até hoje. Foi quase 20 anos depois, quando fui viver no Porto, que partilhei uma casa onde já vivia um gato, o Elias. Aí tive, pela primeira vez, a experiência de morar com um bichinho. E confesso: foi infernal.
Elias tinha uma dificuldade tremenda em respeitar o meu espaço. Fiz de tudo para ensiná-lo a não entrar no meu quarto. Falava, demonstrava, enxotava com palmas, berros, cheguei a colar uma fita adesiva colorida no limiar da porta, para fazê-lo compreender a fronteira. E tenho certeza que ele compreendia perfeitamente. Apenas se recusava a obedecer. Quando eu não estava no quarto ele dava um jeito de entrar e subia em minha cama (via-se pelos pêlos), derrubava coisas das prateleiras, se escondia no armário. E mesmo quando eu estava presente, se a porta estivesse um pouco aberta ele tentava invadir, sorrateiramente, na esperança de que eu não o visse. Mas eu o via, e quando ele via que eu o tinha visto, saía correndo. O que só prova que ele tinha plena consciência das suas transgressões.
Elias. Quem olha assim não imagina o que passei em suas patas.
Apesar do Elias, não fiquei com nenhuma aversão a gatos. Pelo contrário, com o passar dos anos eles começaram a surgir na minha imaginação com alguma frequência. Quando estava selecionando o repertório do Visita, de repente me dei conta que o disco tinha três músicas que falavam de gatos. O pratinho de água no canto da sala, do gato de “Acanalhado”; o falecido gato maltês de “Apartado”; e o gato solitário eternamente à espera de um dono desaparecido, de “Não se faz a um gato”.
Sobre este último, preciso revelar aqui que é um gato que adotei. Recolhi o bichano de dentro de um poema da maravilhosa Wislawa Szymborska, e trouxe-o para dentro de uma melodia que o Saulo Giovannini me enviou durante a pandemia. Não sei por que cargas d’água, enquanto eu esboçava a letra, descobri que era a voz de um gato que falava ali. Imediatamente lembrei que havia este poema da Wislawa, e fiz um enorme esforço para não relê-lo antes de terminar a letra. Tinha muito medo que, diante da genialidade do texto dela, eu me convencesse de que não havia mais nada a falar sobre o assunto, e desistisse da canção. E ainda bem que consegui, porque “Não se faz a um gato”, pelo que ouço por aí, tem emocionado muita gente durante os concertos do Visita.
O poema de Wislawa se chama “Gato num apartamento vazio”. A minha tradução preferida para português, a da Regina Przybycien, começa assim:
Morrer — isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende. (…)
Ia transcrever o poema todo aqui, mas achei melhor não. Não quero estragar a experiência de vocês com o pequeno presente de início de ano que trago hoje. Acabei de terminar a montagem do 3º episódio do mini doc que estou fazendo sobre o Visita, e antes de mostrar ao mundo, quero mostrá-lo a vocês, companheires de newsletter.
Através deste link vocês já podem assistir ao episódio, antes de todo mundo. E torço para que ao longo desse 2025 vocês também possam assistir a gente tocando essas músicas ao vivo, que é sempre mais gostoso.
Feliz ano novo, pessoal! 🤍