newsletter #9

A PRIMEIRA MACUMBA

Dona Maria Mulambo, a senhora me perdoe a indiscrição de revelar aqui um pouquinho da primeira conversa que tivemos. Sei que a senhora não gosta de se exibir, mas naquela noite você me disse tanta coisa, e tanta coisa que transbordou para dentro do meu trabalho, que fica difícil explicá-lo sem lhe citar.

Por exemplo: a senhora olhou para mim e disse que via uma árvore. Mas que às vezes a gente esquece que qualquer árvore, por grande que seja, tem uma raiz três vezes maior. A senhora também disse que as coisas bonitas que eu faço não são só para as pessoas que a gente vê. Para as pessoas que eu vejo na plateia, para as pessoas que vemos no mundo. Que é preciso trabalhar também para os invisíveis. Que os invisíveis também estão ouvindo tudo.

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Estou falando isso por quê? Porque Sabina acaba de completar um ano. E eu sei que a senhora acompanhou a feitura toda desse álbum. E sabe muito bem o quanto de invisível está nele. Mas fique tranquila que eu prometo não contar demais. “Segredo de parede, barata é que sabe tudo”, diz o jongo. E eu digo de um outro jongo: “Vamos apanhar o que está no ar, e o que está no chão deixa a sabiá bicar”. Esse é o refrão da música Sabina, e não fui eu que o escrevi. É um ponto de jongo. Uma amarração, como chamam os jongueiros. O que significam as palavras? Aí é outra história. Eu desconfio, mas o mistério do jongo não se revela para qualquer um. Como música do tempo da escravidão, a poesia do jongo é toda ela feita de metáforas muito intricadas. É linguagem em código, cantada na língua do opressor, para o capataz ouvir e achar que entende, mas na verdade não está entendendo nada.

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Ouvidos bem treinados que percorrem Sabina reconhecem, na bateria do Carlos Cesar Motta, toques de tambor. A “gramática do tambor”, como diz o Luiz Antonio Simas, parceiro que escreveu o texto base da história que contamos. Damos o play, e depois do profético chamamento de Bandarra, as cortinas abrem e tocamos para Exu, em Aldeia. Exu sempre vem primeiro. Dona Maria, a senhora lembra que naquela noite também me disse isso? Exu primeiro. “Exu é a palavra e o caminho”, foram as suas palavras. É verdade que quando levamos Sabina para o palco, a gente não começa por essa música. Mas para não desobedecer o seu conselho, quem já viu o concerto sabe que antes da primeira música cantamos o Bravum de Elegbara (outra do parceiro Simas) para pedir licença. Exu primeiro.

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E porque ele também abre caminho, e há casas onde vem até na frente de Exu, Bala e Estrela é para Ogum. No álbum é a que vem a seguir. Mas no concerto é a primeira. E seguimos cantando para os invisíveis. Sabina é para Iansã. Sangue e Pão para Omolu. Tigres é de Xangô e Imortais é de Oxóssi, que não conheceu a morte. Peça Desculpas, Senhor Presidente é de Oxumarê, assim como Gêmeos é de Oxum e também de seu filho, Logunedé, que é dois dentro de um.

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Isso tudo são só palavras. Dentro de cada um desses nomes há um vasto universo de histórias, de ritmos, de saberes e de sabores que eu não me atreveria a tentar explicar aqui. Fico só pelas palavras, que já são trabalho que baste. Por exemplo: gosto muito de ter colocado juntas, umas sobre as outras, as palavras de Aldir Blanc e Vitorino, em Aldeia. Da Valsa do Maracanã, de Aldir — que não é o Maracanã estádio de futebol, é o rio Maracanã, que passa ao lado, rio meu vizinho, do bairro onde cresci, rio tornado valão de esgoto, que tantas vezes eu já cruzei tapando o nariz — vieram dele as “lâmpadas e pilhas”. Da Queda do Império de Vitorino veio o “pau de canela e mazagão”. Também gosto de ter colocado juntos o “bolo que é a história”, da Natália Correia, com o que vai “de infinito em infinito”, da Matilde Campilho. Infinitos que o Allan Matias, o artista que desenhou a edição de Sabina, escondeu atrás de um ônibus na página 36 da nossa revistinha.

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Ainda haveria muito para dizer. Sobre as laranjas de Sabina, sobre a pesquisa do Allan e do Simas, sobre os desafios que eu próprio tive para pensar os arranjos do álbum, e depois que a banda teve para traduzir tudo para os concertos, sobre a Dandara Catete, que fabricou a enorme laranja que vem conosco para cima do palco… Mas paro por aqui, Dona Maria, que já revelei segredos demais. E quem quiser saber melhor disso tudo, e celebrar o primeiro aniversário da nossa Sabina, que apareça na próxima apresentação ao vivo!

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ERRATA

Na newsletter passada eu falei que mexer com carnaval em Portugal era coisa perigosa. Dito e feito. Venho aqui me penitenciar publicamente por ter simplesmente esquecido de mencionar o carnaval de Torres Vedras como um dos maiores do país. Uma falta grave, imperdoável, inadmissível, que percebi após uma chuva de mensagens indignadas com o meu lapso. O meu pedido de desculpas aos foliões torrienses.

 

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