newsletter #29
DANÇA DO PREC VELOCIDADE 5
Dia 1:
“Caro Luca Argel, bom dia. A Associação José Afonso tem organizado nos últimos anos, por ocasião do seu aniversário, concertos no Fórum Lisboa. Este ano faz parte do nosso plano celebrar “o sempre assumido PREC” como disse Zeca Afonso no seu último concerto em Lisboa. Neste sentido, pensamos em convidá-lo para imaginares um novo olhar sobre o disco Com As Minhas Tamanquinhas (1976) que José Afonso criou inspirado nas vivências dos anos intensos da Revolução dos Cravos…”

Já tô com a roupa de ir
Dia 2:
A maior inveja que tenho de Portugal é que aqui existe um dia para comemorar o fim da ditadura deles. Em 25 de Abril de 1974 caiu o regime fascista que dominou o país por quase 50 (eu disse CINQUENTA) anos. Deve ter sido muito bonito esse dia. Mas a gente fica pensando: E o dia seguinte à revolução? E nas semanas seguintes, meses seguintes… O que acontece?
Dia 7:
Este fim de semana fui ao Algarve tocar no Festival Política. Durante o jantar conhecemos um senhorzinho muito simpático, que por alguma razão me lembrava o Pepe Mujica. Era o fotógrafo Marques Valentim. Ele estava no festival apresentando uma exposição sua, com fotos que tirou justamente naquela época pós-revolução. Deve ter sido o período mais vertiginoso da história de Portugal, os dois anos de “Processo Revolucionário Em Curso”, o PREC. Sempre que ouço falar desse tal PREC é uma história nova. Não sei como é possível tanta coisa acontecer durante tão pouco tempo. O Valentim contou umas tantas durante o jantar que eu ainda não conhecia. Estações de rádio tomadas pelos próprios funcionários, brigas com bispos e cardeais da igreja, um tiroteio na sede do Partido Comunista… Euforia, fúria e convulsões pelo país. Além, é claro, daquilo que todo mundo sabe, tipo, que foi nesse tempo que muitos direitos trabalhistas foram conquistados (férias, salário mínimo, direito à greve), saúde e educação começaram a ser pensados como direitos fundamentais, as mulheres se emanciparam (porque até então precisavam de permissão do pai ou do marido pra qualquer coisa), aconteceu uma reforma agrária… Tudo ao mesmo tempo agora. E ali no meio, vendo, participando e cantando essa história, no seu auge criativo, estava o Zeca.

Foto de Marques Valentim
Dia 8:
Sonhei que estava num baile funk e assistia ao MC Créu vestido com uma fardinha militar regata, bonézinho pra trás e cravo vermelho na lapela, cantando a “Dança do PREC” em todas as velocidades. Quando acordei cheguei a considerar seriamente, por dois segundos, incluir essa versão no meu setlist. Mas desisti. Jamais conseguiria cantar na velocidade 5.
Dia 11:
Aprendi a cantar a primeira música do álbum e fiquei impressionado em ver como o mundo mudou pouco. Em 76 Zeca apontava o dedo para o imperialismo sangrento dos Estados Unidos, da OTAN, de Israel… Basta trocar os nomes dos personagens na letra original: Kissinger por Trump; Golda Meir por Netanyahu; hidroavião por drones; Indochina por Venezuela ou Colômbia ou Groenlândia; Palestina por… Palestina mesmo. 50 anos passaram e o enredo é o mesmo.
Dia 12:
Percebi que o disco tem duas músicas que soam muito próximas do samba. Com as minhas tamanquinhas e Como se faz um canalha têm um balanço que chega quase lá. São sambinhas de cintura dura, que eu achei que ia tirar de letra. Mas que nada. Vou ter que adaptar as músicas pra minha mão, ou adaptar a minha mão pro arranjo do Zeca. Estou mais inclinado para a primeira opção.
Dia 15:
As histórias realmente não acabam nunca. Fui atrás de entender a letra da canção O Dia da Unidade, que tem uma introdução que me lembrou o Led Zeppelin III. A música fala de um tal RAL-1, que parece ser a sigla para “Regimento de Artilharia Ligeira – 1”, e de um soldado chamado Joaquim Carvalho Luís. Depois de umas horas fuçando na internet, percebi o que aconteceu. Foi o seguinte: uma das principais bandeiras da revolução era Portugal finalmente largar mão das suas colônias africanas e tirar suas tropas de lá. Mas um figurão importante do exército, que num primeiro momento até apoiou o 25 de Abril, um ano depois da revolução resolveu mudar de ideia. Resolveu que afinal queria que aqueles territórios (Angola, Moçambique, Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) continuassem pertencendo a Portugal. Não só mudou de ideia, como tentou um golpe de estado pra reverter o processo revolucionário. É aí que entra a música. Nessa tentativa de golpe ele atacou o tal RAL-1, mas deu tudo errado. Só um soldado morreu, o Joaquim Carvalho Luís, que o Zeca homenageia na letra.

Foto de Marques Valentim
Dia 21:
Descobri que durante muito tempo eu interpretei errado a letra de uma música bem conhecida desse disco. Achava que Teresa Torga era uma música sobre uma grande bailarina que resolvia fazer uma performance nua no meio da rua, em pleno PREC. Talvez em protesto contra alguma coisa? Talvez celebrando o fim do fascismo? De qualquer forma, ela acabava sendo impedida de fazer a sua performance, da qual só temos lembrança graças à astúcia de um corajoso fotógrafo que conseguiu registrá-la. Só que não. Não foi nada disso. A história na verdade é sobre uma atriz que tinha passado por um monte de desgraças na vida, estava sozinha e deprimida, tem um surto, sai à rua sem roupa, e é imediatamente acudida por pessoas que percebem que ela está claramente precisando de ajuda. E o fotógrafo da história na verdade é um grande canalha que tentou se aproveitar da situação pra vender as fotos da mulher nua pra um jornal de fofocas, provavelmente.
Dia 24:
Depois de aprender as músicas, ainda me falta um fio condutor para o espetáculo. O que poderia fazer a ligação entre mim e o Zeca? Ouvindo a última faixa do álbum, acho que encontrei esse fio: “Baía da Guanabara, Santa Cruz na fortaleza, está preso Alípio de Freitas, homem de grande firmeza”. Alípio de Freitas. Quando o disco foi lançado, Alípio estava preso nos porões da ditadura militar brasileira, no Rio de Janeiro. A cidade onde eu nasci. Um padre revolucionário, jornalista e professor, que nasceu em Trás-Os-Montes e foi parar no Brasil. Fui atrás de uma entrevista dele à RTP em que ele diz: “A minha pátria é a minha luta. Em qualquer lugar do mundo onde estou, se estou na luta, estou em casa.” Essa ideia de casa me comove, pessoalmente, e acho que comove a qualquer um que tenha um dia saído de sua terra e se visto na condição de estrangeiro, emigrado ou exilado, e aprendido que casa é algo que se constrói de muitas maneiras. Me comove mais ainda vindo de um homem como Alípio, que no meu país lutou pela causa mais importante da nossa história, a raiz de toda a nossa desigualdade, uma ideia que justamente por ser tão importante jamais foi cumprida em cinco séculos (até hoje não foi), mas que ele viu ser cumprida pela revolução aqui em Portugal: a reforma agrária. Alípio fez parte das Ligas Camponesas no Brasil, e existe um documento fundador desse movimento, a “Carta de Alforria do Camponês”. É um manifesto em forma de carta, na verdade. Poderia ser uma poesia. Recortei os trechos mais bonitos para ler durante o concerto. Tá decidido. Vai ser Alípio o elemento de ligação entre todas as músicas que vou tocar.

Alípio de Freitas
Dia 30:
Tive que alterar um pouco a ordem das faixas do álbum, mas o encaixe entre elas e os trechos da carta ficou perfeito! Agora já tenho todo o espetáculo montado, só não sei ainda como começar. É que a última coisa que se decide é o começo. Estive imaginando que, como Alípio foi padre, podia começar com uma oração. Ou melhor, pegar uma oração que todo mundo conheça e reescrever. O “Pai Nosso”, por exemplo, podia facilmente virar uma oração comunista, com um ajuste aqui, outro ali… Imagino as luzes apagadas, só o recorte de uma silhueta no palco, e uma voz grave com bastante eco recitando:
Pai Nosso que estais no céu,
santificado seja o vosso nome,
Seja nosso o vosso reino,
Se assim for a vontade do povo,
Que vive e trabalha na terra
Mas olha pro céu.
O pão nosso de cada dia é escusado nos dar
Que o fazemos nós mesmos
E repartimos o que sobrar.
Perdoai-nos as nossas ofensas,
Assim como nós perdoamos
Mas não esquecemos
Aqueles que nos tem ofendido,
Espoliado, torturado e matado.
E não nos deixeis cair nas mãos do explorador,
Mas livrai-nos do fascismo.
Amém.
Encontrei o meu começo.
ANTES QUE EU ME ESQUEÇA📍
O resultado dessa missão toda à volta das tamanquinhas de Zeca e Alípio poderá ser visto pelas amizades de Lisboa no próximo dia 15. Fora isso, neste mês de novembro andarei muito por Coimbra. Primeiro, para fazer a última apresentação do espetáculo que criei especialmente para a edição 2025 do Festival Política, o “PREC – Pequenas Revoluções no Coração”, que já passou por Braga, Loulé e agora chega à última data, no Convento São Francisco. E na semana seguinte volto à cidade do Mondego para participar do “Fórum Masculinidades em Perspetiva”, no Teatrão. É um evento organizado pela Associação Men Talks e pelo Observatório das Masculinidades, da Universidade de Coimbra. Quem tem acompanhado meus últimos movimentos sabe que esse tema me interessa muito, por conta do meu novo álbum, que está no forno, quase pronto pra sair. Dessa vez vou lá para apresentar o meu “Meigo Energúmeno”, mas algo me diz que não será nossa última colaboração…
🇵🇹 COIMBRA — dia 14/11: Festival Política – Convento São Francisco / 21h – ENTRADA LIVRE
🇵🇹 LISBOA — dia 15/11: Aniversário da Associação José Afonso – Fórum Lisboa / 17h – RESERVAS
🇵🇹 COIMBRA — dia 21/11: Fórum Masculinidades em Perspetiva – Apresentação do livro “Meigo Energúmeno” – Teatrão / 17h30 – INSCRIÇÕES

NA ESCUTA, CÂMBIO 📡
Mês passado recebi uma pergunta sobre o meu livro de poesia “Fui ao Inferno e lembrei de você”, que em Portugal se chama “Fui ao Inferno e lembrei-me de ti”. E a pergunta era justamente sobre essa diferença nos títulos. Foi uma decisão minha fazer essa adaptação, não só dos títulos, mas também de alguns trechos dos poemas. Não sou de fazer essas coisas, mas nesse caso, porque é um livro que tem muito humor, eu achei que alguns textos ficariam mais divertidos para o leitor português se eu os tornasse mais naturais para o jeito de se falar de Portugal. Pareceu uma solução melhor do que tentar encontrar um meio termo (se é que ele existe), e também legítima para o meu caso, já que eu vivo mesmo nesta condição de um pé lá e outro cá.
E a caixa de perguntas continua aberta para vocês, como sempre, nesse botão aqui em cima. Quem souber pode me contar mais histórias obscuras do PREC!
