newsletter #28
OLHA LÁ, QUEM VEM DO LADO OPOSTO
Rapazes… Eu não sei vocês, leitorEs desta newsletter, mas eu quando começo a lembrar do que foi ser um adolescente, de como funcionavam as relações sociais dentro dos grupos de rapazes, especialmente na escola, fico abismado. Como aguentávamos a brutalidade?
Primeiro de tudo, era preciso atenção máxima. Cada palavra, cada atitude, cada gesto, por menor que fosse, estava sob a vigilância constante do grupo. Depois, se o comportamento de algum menino escapasse ao que era considerado adequado, isto é, suficientemente hetero-masculino, a punição vinha implacável. Era como um jogo, só que constante, sem intervalos. E onde ninguém explicava as regras, nem perguntava por elas. Afinal, perguntar seria assumir que não as conhecíamos, e não as conhecer poderia ser considerado uma falta grave. Era, portanto, um jogo de dissimulação. E, com o passar do tempo, vamos percebendo que é sobretudo um jogo de interdições.

Francisco Hurtz – “Fiscal de Cu” (2020)
Já não somos crianças, somos rapazes. Portanto, já não se pode usar mais certas cores, nem brincar com certos brinquedos. Já não se pode cumprimentar outros rapazes ou homens com beijinhos. Só com apertos de mão e tapas nas costas. Não se pode mais nem sequer tocá-los de forma carinhosa. Agora, apenas com algum grau de agressividade é permitido o contato físico (mesmo quando a intenção é amistosa). Até palavras de afeto e admiração, se forem dirigidas a outro rapaz, devem ser medidas com todo o cuidado. Na dúvida, melhor nem tentar. O receio, a ansiedade, a vergonha e a insegurança, porém, não devem ser demonstradas na frente do grupo (o que torna praticamente impossível qualquer pedido de ajuda).

Francisco Hurtz – “Bambolê” (2025)
E quando algum menino transgredia essas proibições? O castigo imediato era a ridicularização. Não só no momento da transgressão, mas durante um bom tempo. Deslizes nunca são esquecidos, e vão ser trazidos de volta sempre que houver oportunidade. Na pior das hipóteses, surgem aí as alcunhas e epítetos que acompanharão os infratores até o fim dos tempos. Em reincidentes, o castigo pode evoluir para a agressão física recreativa. Cascudos, pescotapas, petelecos, tostões, safanões, cachações, pedala-robinhos, rala-cocos e rasteiras em momentos aleatórios do dia. Revidar, demonstrar incômodo ou fazer queixa dessas agressões é considerado outro desvio de conduta, e só agrava a situação.
Mas, para nós, viver nesse pequeno inferno ainda era melhor do que receber a última punição: a exclusão. Ser cortado do convívio, das brincadeiras, dos trabalhos de grupo, das rodas de conversa, dos encontros. Virar, basicamente, um leproso (lembro de um menino na escola que era chamado precisamente desse nome), alguém de quem ninguém quer chegar perto. Era de partir o coração. Acho que muitos sentiam isso também. Talvez a maioria não concordasse com o que via. Mas não sei. Não tínhamos como saber. Não era algo aberto a discussão. Eram as regras do jogo. Questioná-las seria arriscar receber a mesma punição.

Francisco Hurtz – “Silenced” (2022)
Daí eu fico me perguntando: como nós sobrevivemos a isso? Digo nós, os que sobrevivemos, porque nem todos tiveram essa sorte. Mas, dos que conseguiram, a que custo foi? Acho que nem nós próprios temos a dimensão do preço que pagamos, lá atrás, e possivelmente continuamos pagando, a prestações, pelo resto da vida, pela carteirinha de membros do clube dos “homens de verdade”. No meu caso, sei que pelo menos uma parte da salvação eu devo à música.
Lembro de um recreio em junho de 2003, eu e um dos meus melhores amigos na turma sentados no refeitório. Lembro muito bem, estávamos de moletom, porque já era início de inverno, e ele saca da mochila um discman e o Ventura — novo CD do Los Hermanos que tinha acabado de sair, e era nossa banda favorita desde a quinta série, quando ele tirou o Ana Júlia na flauta doce e me ensinou as notas. Eu ainda não tinha escutado nada do álbum. Ele diz que vai pôr a música que mais gostou, faixa 2, abre o encarte em formato de pôster, aponta para a letra da música chamada “O Vencedor”, me entrega os fones de ouvido (os dois, para eu ouvir melhor), dá o play e fica me olhando, esperando eu terminar. “E aí? É muito boa, né?”. Não lembro exatamente o que respondi, mas é claro que eu tinha adorado, e por motivos que eu talvez nem entendesse ainda completamente. Hoje percebo que aquela foi a primeira vez que ouvi alguém dizer, abertamente, que não era preciso toda aquela pose de alfa, toda aquela dissimulação, todas aquelas regras estúpidas para ser um homem. E quem me dizia isso era um homem “de verdade”. Indiscutivelmente um homem de verdade. Um homem que eu admirava. Que milhões de outras pessoas também admiravam.

Francisco Hurtz – “The Invisible Hand” (2025)
Corta para 20 anos depois. Eu já em Portugal, no primeiro dia de uma oficina de escrita de canções que eu estava dando, peço aos participantes que me enviem músicas de que gostem. Uma das alunas diz que a canção que escolheu combina com a minha voz, acha que eu poderia cantá-la um dia. Era uma do Samuel Úria, chamada “Lenço Enxuto”. Chego em casa, ponho a música pra tocar, e de repente volto àquele refeitório da escola quando o Samuel diz, reto e afiado como uma flecha: “não nasci pedra, nasci rapaz”. Desde então passou a me rondar a ideia de gravar essas duas canções, o Lenço e o Vencedor. Mas tinha de ser uma ao lado da outra. Recentemente se juntou a isso o meu interesse cada vez maior, desde o lançamento do Meigo Energúmeno, em ler, estudar e escrever mais sobre masculinidades. Então percebi que tinha chegado a hora.
No próximo dia 24 lanço um pequeno EP, com essas duas músicas lindas, uma ao lado da outra. Gravei as duas em São Paulo, durante a última viagem pelo Brasil, de um jeito bem espontâneo, ao vivo (porém sem público). Meu irmão filmou tudo. Mas enquanto não chega o dia 24, vocês aqui da newsletter, que são mais chegados, já podem ouvir antes de todo mundo.
ANTES QUE EU ME ESQUEÇA📍
Faltou dizer que esse mergulho nas questões da masculinidade têm me dado tanto o que pensar que acabou virando o assunto central do meu próximo álbum. E que ele já está nas fases finais de produção! Por isso a agenda de concertos vai estar bem mais branda nos próximos meses, até o lançamento (que será em janeiro). Enquanto isso, como sempre, vou contando tudo por aqui.
🇵🇹 ÓBIDOS — dia 10/10: Festival Fólio – Apresentação do livro “Meigo Energúmeno” – Livraria de Santiago / 19h30
🇵🇹 OVAR — dia 14/10: Ovar Expande – Workshop de escrita de canções + Showcase – Escola de Artes e Ofícios / 15h + 18h30
🇪🇸 MADRID — dia 16/10: CAR – Centro de Acercamiento a lo Rural / 19h
NA ESCUTA, CÂMBIO 📡
Quero saber qual das duas versões gostaram mais. O Vencedor? O Lenço?
E se tiverem indicações de outras músicas, livros, filmes, podcasts e etc. sobre esse assunto, vou adorar receber.
