newsletter #25

PORTUGUÊS EM PÓ

Quantas línguas existem no mundo? Segundo a internet, são mais de 7 mil. Imagino que cada língua era uma pessoa numa fila muito longa. Uma pessoa não, uma capivara. Só porque na imaginação a gente faz o que quer. Imagino 7 mil capivárias em fila. Algumas são mais gordinhas, algumas são filhotes ainda. Algumas são bem idosas e andam muito devagar. Cada uma é uma língua, e estão na ordem da mais falada pra menos falada. Se estivessem todas indo assistir a um jogo de futebol no Maracanã, a fila daria quase 10 voltas ao redor do estádio. A nossa capivara está lá no meio. A capivara da língua que estou usando agora para escrever esta newsletter, e vocês para lê-la. Ela é uma das primeiras da fila. Só tem outras quatro na frente dela. E pelo menos 6.995 atrás. Orgulho da nossa capivarinha!

Image description

A nossa com certeza seria a que está trepando em cima da amiguinha da frente

O problema — é claro que tem sempre um problema, se não não seria minha newsletter — é que uma língua não é uma capivara. Eu já ouvi muito aquele papo super celebratório dos 260 milhões de falantes de português no planeta. E esse papo me incomoda por dois motivos: primeiro, porque quase sempre se esquecem de mencionar como a gente chegou nesse número extraordinário (séculos de violenta imposição colonial); e segundo porque até parece que nós todos nos entendemos muito bem. Quer dizer, a gente até se entende, mas só até a página dois. Não sei se vocês já viram aquela série que o Estevão Ciavatta fez pra HBO, o “Línguas da nossa língua”. Se puderem, assistam. É maravilhoso perceber como dentro dessa capivarinha, que parece só uma entre outras 7 mil, existem tantas e tantas e tantas mais.

Eu daqui me sinto um grande privilegiado por conviver, ao mesmo tempo, com focos bem diferentes de variantes da minha língua. Tem, é claro, as que eu cresci ouvindo no Brasil, e depois as que eu descobri em Portugal — que, não se enganem pelo tamanho do país, se transformam radicalmente em questão de poucos quilômetros de distância. Percebi como essa exposição a diferentes capivaras pode ser interessante quando escrevi uma música chamada “Natal, Natal”. Sem perceber, coloquei nela uma palavra que muitos amigos no Brasil não entenderam, e outra que muitos amigos em Portugal não entenderam. Esferovite e jabuticaba. Quando percebi a confusão, primeiro fiquei preocupado. Que bicho estou virando que agora já nenhum lado me entende? Mas no instante seguinte já comecei a gostar dessa ideia. É que assim, se eu escrevesse manuais de instrução para equipamentos médicos, a confusão seria um problema. Mas ora, eu escrevo músicas. Que lugar melhor pra brincar com as palavras? Que lugar mais adequado para criar curtos-circuitos na língua?

Então resolvi levar esse alvoroço babélico às últimas consequências em uma outra música, chamada “O Rei já está nu”. Surgiu como convite de um casal de amigos queridos, o Cláudio César Ribeiro (guitarrista da minha banda) e sua digníssima companheira e cantora, Lilian Raquel. Os dois são pernambucanos, e vivem em Portugal há muito mais tempo do que eu. Cláudio fez a melodia, eu pus a letra, e Lilian cantou (na gravação eu canto também). Se algum de vocês, seja brasileiro ou português, conhecer todas as palavras e expressões dessa letra, tá de parabéns, viu? Mas duvido muito! Por isso fiz um glossário lá embaixo com as “traduções”.

O REI JÁ ESTÁ NU

Uca na coité com melado, casca de limão

O primeiro gole é do santo, quebra o gelo no pilão

Ovo de codorna na açorda, vinho de caju

Cuia de açaí com medronho, cataplana de pacu

Piri piri na pururuca, Bimbi fez beiju

Ovos moles, rapadura, ginjinha com jambu

Esparregado na rede, o prazer tem mais sede

E é a ele que eu dou de beber

Tira o cavalo da chuva que isso é banha de cobra

Se eu subo nas tamancas vai ser um 31

Na volta do bilhar grande eu fiz uma vaquinha

Béu béu pardais ao ninho, é o caroço desse angu

Chutei o pau de dois bicos que armava o meu barraco

Não tem mais pêra doce, nem ouro sobre azul

Quem mata cachorro a grito, rés vés campo do Eurico

Não vou mais pagar mico, que o rei já está nu

Zé foi caçar Gambuzinos e apanhou um Saci

Ouviu a Moira Encantada

Dançando com a Caipora e o Mapinguari

GLOSSÁRIO

Uca: Um dos 3 mil nomes que há para a cachaça, no Brasil.

Coité: Cuia.

Melado: Rapadura derretida.

Limão: O verdinho-redondinho em Portugal se chama “lima” (e custa os olhos da cara). O amarelo-alongado no Brasil se chama “limão siciliano”.

Codorna: Codorniz.

Açorda: Prato típico do Alentejo, de origem árabe, feito à base de pão, alho, coentros e ovo.

Cuia: Tigela.

Medronho: Bebida (muito) alcoólica destilada feita com fruto do mesmo nome.

Cataplana: Panela típica do Algarve, muito parecida com a tagine marroquina. Por extensão, as comidas cozidas na cataplana levam esse nome também.

Pacu: Espécie de peixe de água doce.

Piri piri: Tipo de pimenta malagueta.

Pururuca: Tipo de torresmo preparado só com a pele do porco, sem a gordura.

Bimbi: Eletrodoméstico cultuado em Portugal, que é tipo uma mistura de liquidificador com panela elétrica.

Beiju: Tapioca.

Ovos moles: Doce tradicional português feito com ovo e hóstia.

Rapadura: Doce tradicional brasileiro feito com cana.

Ginjinha: Licor feito com a ginja, frutinha parecida com a cereja.
Jambu: Erva típica do norte do Brasil, que tem efeito anestésico. Usada na culinária, e pra fazer uma cachaça que deixa a língua dormente.

Esparregado: Ao contrário do que soa, não é a posição que a gente deita na cama quando tá muito calor. É um purê de espinafre e/ou nabiça.

Dar de beber ao prazer: Brincadeira que eu fiz com o famosíssimo fado “Vou dar de beber à dor”, cantado por Amália Rodrigues.

Tirar o cavalo da chuva: Desistir.

Banha de cobra: Mentira, fraude.

Subir nas tamancas: Armar um barraco.

Um 31: Uma grande confusão. Alusão ao dia 31 de Janeiro de 1891, quando aconteceu uma revolta republicana (fracassada) na cidade do Porto.

Dar a volta ao bilhar grande: Fazer um percurso muito maior do que o necessário pra chegar num lugar.

Fazer uma vaquinha: Juntar dinheiro.

Béu béu pardais ao ninho: A expressão completa é “Rebéubéu pardais ao ninho”. Não faço a mínima ideia do que significa, mas muita gente diz.

Angu: Papa feita com fubá (farinha de milho).

Caroço no angu: Coisa estranha, suspeita.

Pau de dois bicos: Faca de dois (le)gumes.

Chutar o pau da barraca: Mandar tudo pros ares.

Armar um barraco: Subir nas tamancas.

Pêra doce: Coisa fácil.

Ouro sobre azul: Situação ideal.

Matar cachorro a grito: Passar por grande dificuldade.

Rés vés Campo do Eurico: O nome correto é “Campo de Ourique”. Eu é que durante muito achei que fosse do Eurico. Significa quase, por pouco. Alusão ao grande terremoto de 1755, que destruiu boa parte de Lisboa, até o limite da região de Campo de Ourique, a partir de onde as construções continuaram de pé. Não sei se é verdade.

Pagar mico: Passar vergonha.

Gambuzinos, Moira Encantada: Criaturas do folclore português.

Saci, Caipora, Mapinguari: Criaturas do folclore brasileiro.

NA ESCUTA, CÂMBIO 📡

Se alguma parte da letra ainda não deu pra entender e ficou de fora dessa lista, me digam! Vocês já sabem por onde 😉👇

LUCA TE ESCUTA

Na última newsletter alguém me pediu o poema que eu li durante o concerto no CCB com a Filipe Sambado. Vou dar as coordenadas: o poema se chama “Ode à Tristeza”, e é do poeta sírio-palestino Ghayath Almadhoun. A única tradução dele para o português acabou de ser publicada no Brasil pela Ars et Vita, com prefácio do meu querido e admirado Ricardo Domeneck. Eu próprio ainda não tenho o livro, tive que transcrever o poema de um vídeo com a leitura do próprio autor. E valeu muito a pena, foi dos momentos mais emocionantes do espetáculo.

ANTES QUE EU ME ESQUEÇA📍

Estou em pulgas, por vários motivos. É porque vou apresentar o Meigo Energúmeno numa livraria que faz o match perfeito com o livro? Sim. É porque vou tocar pela primeira vez na Guarda? Também. É porque vou (finalmente!) tocar num dos festivais mais incríveis de Portugal, que tô há anos paquerando pra ir? Com certeza. Mas tem uma coisa que tá mexendo mais que tudo: turnêzinha no BRASIL!

PORTO — dia 5/7: Livraria da Cassandra (Av. de Camilo, 118) / 17h – Apresentação do livro Meigo Energúmeno

GUARDA — dia 19/7: (informações no meu Instagram)

SINES — dia 25/7: Festival Músicas do Mundo – Castelo / 18h

RIO DE JANEIRO — dia 30/7: Centro da Música Carioca / 19h – INGRESSOS

PARATY (FLIP) — dia 2/8: Casa Urutau / 20h30 – Lançamento do livro Meigo Energúmeno

BELO HORIZONTE — dia 5/8: Tranquilo / INGRESSOS

BELO HORIZONTE — dia 6/8: Livraria Quixote / 18h30 – Apresentação do livro Meigo Energúmeno

SÃO PAULO — dia 7/8: Livraria Ponta de Lança / 19h – Apresentação do livro Meigo Energúmeno

SÃO PAULO — dia 8/8: Casa Odette / h – INGRESSOS

 

Image description