newsletter #20

EU E O FESTIVAL DA CANÇÃO

E se te dessem 3 minutos para falar com um país inteiro? Os olhos e ouvidos de milhões de pessoas, por 3 minutos. O que você diria?

Foi essa a pergunta que eu tive de responder há poucos meses, ao receber uma mensagem do Nuno Galopim me convidando para o Festival da Canção aqui de Portugal. Diante disso, acho que o mais normal seria dar uma leve surtada e travar. Mas felizmente, como um bom maníaco por controle, eu próprio já me tinha feito essa pergunta há bastante tempo. E encontrado uma resposta.

Já contei para vocês em newsletters passadas sobre a aventura de fazer uma pequena participação no Festival da Canção de 2024, cantando Chico Buarque em um número que homenageou os 50 anos da Revolução dos Cravos. Desde esse dia passei a imaginar a hipótese de voltar a subir naquele palco, mas para cantar uma música minha. Sobre o que cantar? O que escrever? E nesse mesmo dia, por coincidência, eu tinha um vôo marcado para o Brasil, logo depois das gravações. De modo que essa perguntinha teve 9 horas consecutivas para abrir um triplex na minha cabeça.

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A primeira parte da questão era o assunto: cantar sobre o quê? E isso eu até percebi rápido. Eu tinha a certeza de pelo menos duas coisas: primeiro, queria falar sobre uma temática do presente, que esteja instigando o mundo agora mesmo; segundo, queria uma coisa que me atinja em cheio, que diga respeito a mim diretamente. E assim, como dois e dois são cinco, estava decidido: imigração. Ser imigrante tornou-se uma parte importante da minha identidade nos últimos 10 anos, e mais do que isso, passou a ser um traço fundamental do meu trabalho como artista.

Muito bem, o primeiro passo tinha sido dado. Agora podia dormir o resto do vôo, e pensar na música durante os próximos dias, semanas, meses… Mas eu fechei o olho e veio um verso. Tomei nota. Fechei de novo o olho e veio outro. Mais uma nota. E depois outro, e outro, até que terminei a primeira parte da música. Pronto, já adiantei um bom trabalho, agora posso finalmente dormir. Mas ali naquela fronteira entre consciência e sonho, começou a surgir a segunda parte da música, já com melodia e tudo. Dilema: corto o embalo do sono para anotar, ou deixo a inspiração passar e adormeço? Será que vou lembrar disso quando acordar? Por via das dúvidas, melhor tomar nota. E foi assim o vôo todo. Não consegui dormir, mas em compensação, quando o avião tocou o chão do Brasil, eu já tinha uma música a mais na gaveta.

Estou contando essa história porque acho bonito que uma canção sobre imigrantes tenha nascido em trânsito, em país nenhum. E gosto da própria canção. Gosto da forma como a Pri Azevedo escreveu o arranjo. Da escolha (foi dela) de usar a sanfona em vez do piano. Da simplicidade com que gravamos, sem grandes truques ou efeitos especiais. Apenas a força das palavras e de um instrumento. Na minha cabeça, ser recebido no Festival da Canção para defender um trabalho assim, com essa mensagem, com esse despojo, já é uma vitória. Até que a música foi lançada para o mundo ouvir, e eu comecei a receber os comentários sobre ela.

Não vou falar dos trolls que, é claro, aparecem, sempre tão previsíveis, mas que não merecem dois segundos da nossa atenção. Quero falar das mensagens de amigos e amigas imigrantes que se identificaram com a música. Foram várias e uma delas me emocionou profundamente. Um amigo do Porto, também músico, que me confidenciou o sofrimento que ele e a sua família têm passado por conta da xenofobia. Dos insultos que já recebeu no trabalho, da discriminação que já viu as filhas pequenas passarem, da lembrança de um outro amigo nosso, que costumava tocar na rua, até o dia em que teve uma costela partida por um grupo de polícias à paisana que notaram que ele era brasileiro e só por isso resolveram lhe dar uma surra — em plena luz do dia, em plena Avenida dos Aliados. E por cima de toda essa violência ao nosso redor, uma dificuldade brutal de se integrar, de se sentir amado, acolhido, valorizado. Ao ouvir esta canção, disse ele no final da mensagem, o que sentiu não foi só que ela o representava, mas que ela o ajudou a processar um pouco essa dor. A aliviar essa solidão. E isso, minha gente, é a maior dádiva que um artista pode pedir. Não há prêmio, não há troféu, não há spotify wrapped mais precioso do que isso. Aconteça o que acontecer, para mim já valeu. O que mais importa ganhar está ganho, nem que esse amigo tivesse sido a única pessoa no mundo a ouvir a música. Mas que bom que vão ser muitas mais.

Quem foi? é para ele, e também para o nepalês encostado à parede pela polícia de choque na rua do Benformoso. Para a criança brasileira chamada de macaca pelos colegas de escola em Braga. Para o português espancado até à morte por um grupo de neonazis em Leipzig. É para dizer, em três palavras: imigrantes merecem respeito. O trabalhador imigrante, a família imigrante, os filhos e netos de imigrantes que já nasceram aqui mas são tratados como estrangeiros no seu próprio país. Essas pessoas merecem nosso respeito. Não o nosso medo. Não a nossa desconfiança. Quem foi? é para essas pessoas. Para todos que já ouviram um “volta pra tua terra” no meio da rua, num serviço público, numa loja, nos transportes, nas redes sociais; para todos que já foram intimidados ou agredidos pela polícia enquanto ouviam insultos xenófobos; para quem já viu os filhos serem humilhados na escola por não falarem o português que a professora acha que é o “correto”; para os que já foram discriminados no trabalho, na universidade, na discoteca ou no consultório médico, por conta de nacionalidade, sotaque, apelido ou tom de pele; para todos que tem que aguentar grosserias de desconhecidos que fazem questão de nos lembrar, dia sim, dia também, que este lugar não é nosso. Para quem tenta e não consegue fazer novas amizades. Para quem se sente profundamente sozinho num país estranho. Dia 1 de março, na primeira semifinal do Festival, é nessas pessoas que estarei pensando quando subir de novo naquele palco. Essa é para vocês. Essa é para nós.

UM PRESENTINHO

Acabei esticando esta newsletter um pouco mais do que gostaria, mas não quero terminar sem antes oferecer a vocês, que chegaram até aqui, um presentinho. Eu fiz um video mostrando um pouco do processo de gravação da música, e falando sobre ela. Vou publicá-lo em breve, mas só vocês, que têm esse contato mais próximo comigo por aqui, vão poder assistir antes de todo mundo.

FALA QUE EU TE ESCUTO

Outra coisa especial que vou inaugurar esse mês é um espaço para podermos estar ainda mais próximos. Criei uma página onde vocês podem, a cada edição da newsletter, deixar seus comentários, impressões, sugestões, pedidos… Basta clicar no botão abaixo e eu estarei lá, ouvindo vocês.

LUCA TE ESCUTA

ANTES QUE EU ME ESQUEÇA

Como correria pouca é bobagem, tenho a enorme alegria de anunciar que, uma semana antes do Festival da Canção, o espetáculo SAMBA DE GUERRILHA finalmente voltará aos palcos! Depois de um ano de descanso, estaremos no Teatro-Cine de Pombal, dia 22 de fevereiro, às 21h30. Sugiro aproveitar, que não é todo dia que isso acontece, ainda mais com bilhetes a 5€! 😲

Samba Guerrilha em Pombal cartaz

 

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