newsletter #17
TOC, TOC, TOC!
Eu tinha uma amiga na escola que gostava de roubar o meu lanche. Mas não era qualquer lanche. Era só quando eu levava o sanduíche que a minha avó preparava. A menina adorava esse sanduíche. Quando batia a hora do recreio ela ia investigar o que eu tinha trazido no dia. Se visse o embrulhadinho de papel alumínio ela se aproximava. Vinha sorrindo, muito educada, muito simpática, fazia um elogio, e com ar muito dócil pedia uma mordida. Às vezes era só uma mordida mesmo. Mas outras vezes, se o sanduíche estivesse especialmente bom, ou muito grande a fome, ela saía correndo com o sanduíche na mão… E era uma vez um lanche.
É claro que eu já conhecia muito bem esse roteiro. A gente estudou sete anos na mesma sala, e os ataques da morta-de-fome (não revelarei seu nome) já faziam parte do nosso folclore estudantil. Lembro de um aniversário dela em que levei um sanduíche extra para a escola, e dei de presente a ela. A bichinha quase chorou de emoção! A verdade é que ficamos realmente amigos. E por que não? Roubar comida nunca foi pecado.
O cobiçado saunduíche da vovó
Aos doze anos comecei a estudar música, e volta e meia aparecia na escola com o violão nas costas. Minha amiga morta-de-fome me contou então que tinha uma irmã que também estudava música, no mesmo conservatório que eu, só que era uns anos mais avançada. Algumas vezes me cruzei com essa irmã, mas não nos conhecíamos muito bem. Só sabia que ela era alta, e tocava piano. Corta para 20 anos depois. Aqui estamos, eu e a Pri Azevedo, a irmã da amiga que roubava meu lanche, gravando juntos um álbum.
E justamente um álbum que é, ele próprio, uma viagem no tempo. Quem já teve a oportunidade de ouvir o Visita (e quem não teve, vá ouvir!) sabe do que estou falando, porque certamente reconheceu algumas músicas antigas regravadas. Mas talvez vocês não saibam que há coisas ali que são literalmente antigas. Antigas tipo, da Antiguidade mesmo.
Está na última música do álbum. A que tem um nome estranho, 2:55. Isso foi a hora da madrugada em que eu terminei de escrevê-la, há mais de 10 anos, no quarto em que eu vivia no Porto. Estava muito triste com o fim de uma relação, e me lembrei de uns versos escritos dois mil anos atrás por sabe-se lá quem, numa lápide na Turquia. Esses versos ficaram muito conhecidos porque são os mais antigos que já foram encontrados, na íntegra, acompanhados por uma notação musical. Ou seja, era uma canção. A canção mais antiga do ocidente. Epitáfio de Seikilos, é como a chamam, e eu já li algumas versões da sua tradução do grego. A mais bonita termina com o verso “O tempo exige o fim.”
O Epitáfio de Seikilos
Ali, naquela noite no Porto, às 2:55 da madrugada, esse verso fez todo o sentido para mim. Tanto que o roubei para a minha música. Roubar versos também nunca foi pecado. O resto da letra, que me saiu naturalmente, diz que todos temos o direito de ser tristes. Num mundo de filtros de instagram, isso não é algo que ouvimos falar muito. Do direito à tristeza. Por isso achei o máximo essa ilustração da Mariana, a Miserável, que vi exposta mês passado em Óbidos, durante o Fólio. Sincronicidade total! Se eu tivesse feito um single com essa música, não haveria melhor capa.
O direito à tristeza, à fragilidade, à vulnerabilidade. Tenho pensado sobre isso… E percebido que o assunto não cabe numa só música. Acho que dava para escrever um álbum inteiro à volta dessa ideia. Será? Talvez eu faça isso. Vocês souberam primeiro por aqui.
ANTES QUE EU ME ESQUEÇA
Não existe outro assunto possível para o início deste mês: apresentações ao vivo do VISITA! Por enquanto apenas no Porto e Lisboa. Quem quiser vinis, recomendo comprar nos concertos 😉
Porto – dia 3, às 18h: Novo Ático
Lisboa – dia 7, às 21h30: Auditório da Reitoria da UNL