newsletter #13

🚂 x 🚌

Já chegou o verão no hemisfério norte. Para uns, tempo de descanso. Para outros, a época do ano mais assoberbada de trabalho. Para os funcionários de restaurantes, hotéis, guias turísticos, motoristas de tuk tuk, e, é claro, o nosso proletariado da música. Como acontece todo ano, meus camaradas e eu vamos passar os próximos 3 meses rodando o país pelos festivais, casamentos, eventos corporativos, esquinas, barzinhos, cassinos, festas de aldeia, e onde mais for desejada uma das poucas coisas que a inteligência artificial ainda não dá conta de fazer: música ao vivo!

Mas não é sobre isso que venho falar na newsletter deste mês. Quem vê de fora pode pensar que o essencial do nosso trabalho acontece no palco, entre montagens, passagens de som e o espetáculo. Quem nos dera. A parte mais custosa, a que mais cansa, a que mais exige do corpo e da mente, a que mais tempo demora, é a estrada. O ir e voltar. É sobre isso que venho falar hoje. Sobre onde vamos passar boa parte do verão.

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Ônibus, busão, autocarro, camioneta, chamem pelo nome que quiserem. Aqui em Portugal, onde estou, quando a viagem (ou parte dela) precisa ser feita de transporte coletivo, ele é o melhor. É o campeão. Há quem duvide, mas eu posso provar.

Vamos aos seus concorrentes: o avião e o trem. Quer dizer, o avião e o comboio. Parêntese rápido: não consigo decidir qual palavra usar, então resolvi que quando uma coisa tiver nomes diferentes em PT-BR e PT-PT, vou ficar alternando entre um e outro ao longo do texto, sem compromisso nenhum com a coerência. Ok? Fecha parêntese.

Com o avião nem precisamos perder muito tempo. Além de ser caro demais, na maior parte do tempo é simplesmente estúpido usá-lo dentro de um país tão pequeno. Além da questão da poluição, só durante o tempo que se leva até chegar ao aeroporto, despachar mala, passar pela segurança, esperar o embarque, o desembarque, pegar de novo a mala… o ônibus já atravessou metade do país. Isso sem contar que a cobertura territorial desse transporte é extremamente restrita, porque aqui só tem 3 aeroportos. Ou seja, se você não vai para perto de nenhum deles, voar nem sequer é uma opção. O grande embate aqui é mesmo entre o trem e o ônibus. Essa sim, é uma briga que vale a pena assistir. Preparados? Então que comece a pancadaria.

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O primeiro argumento que os comboieiros usarão contra os autocarristas é a velocidade. E até faz sentido. Sobre trilhos não há trânsito, e Portugal até tem a sua versão de trem-bala, o famoso Alfa-Pendular. Porém (ah, porém!) esqueceram de avisar ao pessoal que bala não faz curva. Nem trem-bala. Quer dizer, esse até faz, mas aí precisa andar bem mais devagar… E os caminhos de ferro daqui tem é curva. Ou seja, são poucos os trechos em que o Alfa realmente consegue usar toda a sua velocidade estonteante. Conclusão: no comboio mais rápido que tem, uma viagem clássica Porto-Lisboa leva 3 horas. No busão mais rápido leva 3 horas e 15 minutos. “Aha! É pouco, mas tem diferença. Ponto pro comboio!” Dirão os comboieiros. Mas eu peço calma. Antes de contar vitória, ouçam a palavra de quem faz essa viagem praticamente toda semana (só esse ano já foram 34 vezes). Imagina um trem e uma camioneta que vão fazer o mesmo percurso, com saída marcada para a mesma hora. Para o trem chegar primeiro, ele precisa de uma coisa muito básica, porém rara: sair na hora. Isso quando ele sai, porque há períodos de greve (e quase sempre há greve) em que andar de comboio é uma loteria. Às vezes ele aparece, às vezes não. “Comboio suprimido”, é como a senhora diz no sistema de som da estação.

Outra coisa muito comum nos comboios é eles pararem do nada. Simplesmente param, sem explicação. Pode ser 5 minutos, ou 10, ou 40. Mais uma vez, é loteria. Já me aconteceu várias vezes, e olha que eu evito andar de trem (como já devem ter percebido). Eventualmente ele volta a funcionar e, vejam só, até chega no destino! Nesse exato momento os passageiros que foram de busão já estão em casa de banho tomado assistindo a novela. Portanto, em matéria de velocidade, fazendo uma média do que acontece no mundo real, é ponto para o busão.

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Próxima categoria: capilaridade. Essa não tem sequer discussão. Mesmo os comboieiros mais aguerridos terão que admitir que há muito mais estrada do que linha férrea no país. Coisa que eu acho, honestamente, uma lástima. É realmente triste dizer, mas na década de 1950, durante a ditadura fascista, o país tinha 40% mais ferrovia do que tem hoje. Em compensação, só de 1995 pra cá a rede rodoviária cresceu mais de 300%. Esse ponto amargo vai pros autocarros, que definitivamente têm uma oferta de destinos bem mais abrangente do que os comboios.

Para não acharem que estou sendo parcial nessa disputa, apesar da minha declarada torcida autocarrista, sou obrigado a entrar numa categoria em que não temos a menor chance: poluição. De longe, o transporte ferroviário polui bem menos, e carrega mais gente por viagem. Em matéria de eficiência ecológica, ponto pro trem.

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Chegamos enfim numa categoria onde a briga volta a ficar boa: conforto. Para podermos fazer essa comparação temos primeiro que estabelecer aqui um regra de equilíbrio. Ao contrário do comboio, o busão é democrático. Não tem essa de primeira classe e ralé. No busão tá todo mundo junto. Então vamos deixar de lado a primeira classe, e comparar a experiência do viajante médio, nos dois transportes.

Tudo começa antes mesmo da gente sentar a bunda no assento. Primeiro é preciso guardar a mala, e aí já temos a primeira grande diferença. No trem você precisa subir a escadinha com a mala, entrar no vagão (quer dizer, na carruagem), atravessar o corredor com ela até o seu lugar, e levantar a dita cuja por cima da cabeça para guardar no compartimento de cima. Tá muito pesada? Azar o seu. Como alternativa, você pode deixar a bagagem com seus valiosos pertences em uns buracos que ficam logo antes de entrar no corredor. Agora, multiplique essa situação pelo número de pessoas que cabem numa carruagem (são 214). Evidentemente que as malas de todo mundo não cabem nesses buracos, o que significa engarrafamento no corredor, com todo mundo querendo passar, arrastando as malas, ao mesmo tempo. Depois tem sempre os que descobrem que entraram no vagão errado, os idosos que não conseguem levantar as bolsas para guardar nos compartimentos em cima, e aí de repente o trem dá a partida e quem ainda está de pé quase cai no chão… Imaginem o caos.

Vejamos então a mesma situação na camioneta. Antes entrar o povo larga as malas pesadas na bagageira, que está no nível do chão, e sobe, sem tralhas, tranquilamente, cada um para o seu lugar.

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Falando em lugar: se você está no ônibus, tem a poltrona reclinável. No trem, não. Se você está no ônibus, sua poltrona reclinável vai tremelicar suavemente enquanto o veículo desliza pela autoestrada (dá para ler perfeitamente). No trem, prepare-se para chacoalhar como um carrinho de bate-bate (quer dizer, carrinho de choque). Se você está no ônibus, tem um Wifi grátis que é péssimo. No trem, é igualmente grátis e igualmente péssimo. Ok, então vamos usar a nossa própria internet. Se você está no ônibus vai ter rede normal, porque ao longo da estrada há sempre antenas por perto. No trem, de quinze em quinze minutos sua internet vai morrer, porque há trechos em que não tem uma mísera antena perto da ferrovia. Se você está no ônibus, até por razões de segurança, todo mundo vai ficar sentadinho no seu lugar durante a viagem. Não é permitido ficar zanzando de pé. Já no trem, porque pode, vai ter sempre gente passando no corredor pra cima e pra baixo, criança correndo, adolescente que não consegue ficar parado, idoso que precisa esticar as pernas, adulto indo pra carruagem-bar… Simplesmente não há paz. Não há um minuto de paz.

Eu sei. Vocês se animaram com a “carruagem-bar”. Até um autocarrista como eu admite que essa é uma boa ideia. Dentro do busão realmente ainda não temos bar. Mas garanto que essa animação de vocês termina assim que descobrirem quanto custam as coisas na tal carruagem-bar. Lá, por uma cervejinha e um amendoim você já está pagando mais caro que o preço da passagem.

Falando nisso, podemos encerrar a batalha nessa última categoria: preço. Até há uns anos a disputa era um pouco mais equilibrada, mas de repente chegaram as empresas de ônibus low-cost e jogaram os preços lá pra baixo. Vendo com antecedência, as passagens mais baratas de autocarro podem custar até 3 vezes menos que as mais baratas de comboio. Contas feitas, nosso placar portanto é uma retumbante goleada de 4×1 do busão sobre o trenzinho. Eu falei que ia provar pra vocês quem é o campeão!

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Boa viagem!

ANTES QUE EU ME ESQUEÇA

O calor de julho pede rodas de samba e bebidinhas. E é isso que a agenda do mês tem para oferecer!

Porto – dia 14: Samba Sem Fronteiras no Musa das Virtudes
Burgos (Espanha) – dia 19: Samba Sem Fronteiras no Festival WIM (What Is Music)
Mêda – dia 26: Samba Sem Fronteiras no Festival Mêda+
Porto – dia 27: Ana Deus & Luca Argel apresentam Canções para beber com Pessoa, na Biblioteca Almeida Garrett

 

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