newsletter #4

SAMBA NA CHINA

É isso mesmo que você leu. Depois das primeiras apresentações em Portugal, comecei a imaginar uma coisa para o nosso espetáculo do Samba de Guerrilha: seria tão incrível se pudéssemos levá-lo às ex-colônias portuguesas, pela África e Ásia… E não é que está acontecendo? Vamos começar pela ex mais recente. Isto é, vai ter Guerrilha em MACAU! Dá para acreditar?

Às amizades brasileiras, talvez menos familiarizadas com as bizarrias da história colonial portuguesa depois da nossa independência em 1822, vale dizer que Macau foi território português durante séculos, e o seu processo de “devolução” à China só terminou oficialmente em 1999. Sim, mil novecentos e noventa e nove.
Não por acaso, na sequência do lançamento do Sabina, cheguei a dar uma longa entrevista para a querida Sara Figueiredo Costa, publicada no suplemento literário Parágrafo, que é uma revista de lá de Macau, editada em português, e toda acessível online. Já eram os ventos do oriente anunciando essa aproximação…

Image description

Quem nos leva até lá é a programação do Rota das Letras – Festival Literário de Macau. Vamos apresentar o Samba de Guerrilha dia 14, num lugar gigantesco chamado Broadway Theatre, com tradução simultânea para inglês e… cantonês! É mole?

Image description

Vendo essas letrinhas, lembro que no meu primeiro livro (e lá se vão mais de 10 anos!) tem um poema que começa com os versos: “prefiro que você me ensine / frases em cantonês”.

Image description

Não sei se vou aprender algum provérbio em cantonês, nem se vou encontrar queijo de cabra em algum mercado de Macau. Mas só de saber que a nossa mala cheia de histórias e música vai chegar ao outro lado do mundo, já é o máximo. Que fique para a surpresa o que traremos de volta.

UMA SEMANA EM PORTUGAL

O que vou contar agora aconteceu mês passado em Lisboa, no intervalo de uma semana. Senta que lá vem história.
A livraria Almedina recebia a apresentação do “No Meu Bairro”, da Lúcia Vicente. É um livro infantil sobre diversidade e inclusão, e no país é o primeiro do gênero a adotar linguagem inclusiva (sistema gramatical neutro). A meio da apresentação, um grupo de fanáticos de extrema-direita interrompe o evento e começa a berrar insultos à autora e aos presentes. Entre a torrente de ódio que o porta-voz do grupo vomitou, destaquei duas expressões: “Chega!” (nome do partido de extrema-direita português que mais tem dado voz ao discurso homofóbico, transfóbico, racista, xenófobo, e enfim, aquele coquetel que já conhecemos); e “protejam as crianças!”.
Corta para cinco dias depois. Estamos num festival internacional da indústria da música (MIL – Lisboa). Duas crianças, de 5 e 8 anos, filhas de uma delegada do festival, brincam no recinto. São abordadas e perseguidas por um homem, produtor musical belga, que as acusa de terem-lhe roubado o cartão de crédito de dentro da sua bolsa. As crianças fogem para uma das salas do edifício. O homem vai atrás e agarra uma delas pelo braço. Os pais são alertados e encontram as filhas a chorar e gritar, na sala com aquele homem, que insiste em acusá-las do roubo. Não são as únicas crianças presentes no festival. Ao ser perguntado porque acreditava ter sido roubado por aquelas duas em específico, o homem responde com naturalidade: “pensava que se tratava de crianças de rua, crianças ciganas”. Eram as duas únicas crianças negras no festival.

A semana em que tudo isto aconteceu começou com as alegações finais do processo em que Mamadou Ba, um dos ativistas anti-racistas mais vocais em Portugal, é acusado de difamação pelo militante neonazista Mário Machado. Pois é, parece que os sinais estão trocados, mas é isso mesmo. De um lado um notório e declarado neonazista, cuja ficha corrida é capaz de ir de uma margem à outra do Tejo, onde se encontram crimes de discriminação racial, ofensas corporais, posse de armas ilegais, sequestro e extorsão. Do outro, um acadêmico que tem dedicado a vida à defesa dos direitos humanos de pessoas racializadas e migrantes, membro de conselhos científicos, grupos de trabalho e vencedor de prêmios a nível internacional sobre o assunto.
Agora por que raios é este, e não aquele, quem está no banco dos réus?

Image description

Essa história começa na noite de 10 de junho de 1995, quando um grupo de neonazis (entre eles, Mário Machado) se organiza para promover uma série de espancamentos de pessoas negras no centro de Lisboa. A vítima fatal da noite foi um jovem chamado Alcindo Monteiro. Machado nunca foi condenado por esta morte. Os neonazis não estiveram todos juntos por toda a noite, e nunca se conseguiu provar que ele estivesse presente no momento específico do assassinato de Alcindo.
Corta para 2020. Em um texto de redes sociais, Mamadou Ba relembra que Machado foi “um dos principais responsáveis pelo assassinato de Alcindo”. Sim, pois idealizou, orquestrou, e ainda por cima continua a defender abertamente a ideologia de ódio que motivou as violências daquela noite. Como eximi-lo de responsabilidade? Eu não sei, mas aparentemente o Ministério Público de Portugal tem a resposta. Por uma filigrana de interpretação de texto, o MP não só acolheu a queixa-crime do neonazi que diz ter tido a sua honra (oi?) ferida, como também recomendou ao juiz a condenação de Mamadou. Isso foi o início daquela fatídica semana.
A sentença de Mamadou vai ser lida no próximo dia 20, às 11h. Depois de Alcindo — e de Giovani dos Santos, e de Bruno Candé, e de Cláudia Simões, e de Danijoy Pontes, e da Cova da Moura, e do Bairro do Jamaica, e de tantas outras tragédias — parece que assistiremos a mais um triste e revoltante capítulo da história do racismo em Portugal.

Image description

ANTES QUE EU ME ESQUEÇA

Macau não vai ser nossa única viagem internacional de outubro! No dia 28 também temos concerto marcado em Salamanca, no Teatro Juan del Enzina, às 20h, e a entrada é livre. Salamanca é uma cidade tão cor-de-laranja, acho que o Sabina vai ornar bem. Quem tiver conhecid@s por lá, passe a palavra! 🍊

 

Image description